terça-feira, 10 de setembro de 2019

A alegria sólida dos ladrilhos hidráulicos


Fonte: Ladrilhos Hidráulicos São Francisco

            Houve época em que a criatividade estava muito em alta. Eu não falo apenas em usar efeitos especiais para dar cara “nova” a algum tema preexistente, como faz o cinema de hoje. Me refiro a originalidade mesmo, de alta qualidade e em abundância, tudo isso oferecido de forma tão generosa, que a cornucópia criativa parecia não ter limites. Houve alguns exageros, como os flamingos cor-de-rosa, mas mesmo eles eram muito bonitos. Tão bonitos que voltaram à moda de onde nunca realmente saíram.




            Tudo começou nos loucos anos 1920 a foi até os neoloucos anos 1970, estes sim, uma década de sanatório geral. Mas o longo apogeu foi dos anos 1940 aos 1960, três décadas de tamanha profusão de proficuidade de engenharia e design, que as pessoas pensaram que nunca acabaria, e assim não se importavam em simplesmente descartar o que fora feito há não mais do que cinco anos antes. Em determinado momento, no início dos anos 1970, começaram a se cansar de tantos estímulos visuais e começaram a focar um minimalismo árido, que em nada lembrava o minimalismo criativo dos anos 1960. A humanidade estava se preparando para viver no espaço, mas acabou descobrindo que vivia no vazio.



            Naquela época pensava-se que ninguém sentiria falta daqueles carros que “beiravam o barroco”, daqueles “vestidos espalhafatosos” e pouco práticos, daqueles “filmes melosos” e daquelas “casas cafonas”. Para começo de conversa, barroco é um plastimóvel descartável e desproporcionado, cheio de vincos desencontrados e com cara de quem está com diarreia; espalhafatoso é um jeans de mil reais, cheio de penduricalhos e com mais rasgos do que a Fome dos cavaleiros do apocalipse; “Meloso” diz quem nunca assistiu a um filme clássico, eram violência e romances tórridos que hoje renderiam censura etária; Cafona é pagar por um cubículo mal acabado de 10m² mais do que antes se pagava por uma casa de 250m² mais o quintal, só para posar de moderno e preocupado com as causas, o que a maioria na verdade NÃO É.


Fonte: Amorim Polimentos


            Pois as pessoas começaram a sentir sim, falta de tudo aquilo que fora desprezado. E eu não falo só de hipsters amargurados e saudosos por épocas em que não viveram, pessoas que viveram tudo aquilo passaram a pesar os prós e contras e, que tristeza, perceberam que eram felizes e não sabiam. Aumentava a tristeza ver tudo o que fez parte de suas vidas ser literalmente destruído por diversão, e esse sentimentalismo só aumentou a dor e o amor pelo antigo. Eles ainda se lembravam de todas as dificuldades e limitações sociais, não floreavam como alguns insistem em dizer sem irem ter com as fontes. Meus amigos, quando eu era criança, não tinham menos de quarenta anos.



            Aqui adiciono meu testemunho às minhas pesquisas. O mundo mergulhava lentamente em uma era de depressão que ainda perdura, apesar das pequenas convulsões de luz e cores dos anos 1980. Os jornais e os artistas, a quem caberia ajudar as pessoas a atravessar uma fase que seria apenas de recolhimento, lucraram e ainda lucram horrores com a desilusão coletiva. Onde a imprensa é livre, ela fez essa besteira, onde não é só havia mensagens de esperança e louvores ao regime. Enfim, essa aridez se refletia também nos productos e serviços, com uma despersonalização coletiva cada vez maior, tudo isso se retroalimentando em um leminiscato depressivo; e todos achando isso normal… quer dizer, nem todos.


Fonte: Patrimônio Belga no Brasil


            Algumas pessoas olhavam para trás e viam épocas com muito menos recursos esbanjando mais vitalidade em cada indivíduo, do que grupos inteiros da época vigente, mas pensavam que eram só loucos solitários, que queriam trocar pisos modernos por ladrilhos hidráulicos decorados dos anos 1930… até que um dia eles descobriram que não eram tão solitários assim. Loucos, talvez, mas não solitários. Descobriram que feiras de antiguidades não eram freqüentadas por bisavós acumuladores em fim de vida e, para esta história não ficar sem fim, a cultura retrô-vintage estourou neste início de século, se apoiando justo na estrutura contemporânea da mídia que ainda nos deprime.


            Os brechós, que começavam a proliferar, não eram mais o suficiente, agora as pessoas queriam suas casas TOTALMENTE no espírito de época. Os eventos de carros antigos mostraram que esses saudosistas que não viveram lá, têm mais poder aquisitivo do que os preconceituosos julgavam ter os clientes de memorabilia, então artigos modernos com estilo retrô voltaram aos catálogos, inclusive eletrodomésticos; claro que cobrando o preço da escala de produção e da qualidade exigida por seu público. Isso incluiu o mercado de cerâmicas, em especial o ladrilho hidráulico.


Fonte: Patrimônio Belga no Brasil


            De início era apenas uma moda, ou um meio de repor peças que não se fabricam mais, já que a produção é essencialmente manual, por isso é caro. Não mais caro, porém, do que os pisos de pedra que substituiu nos anos 1850, quando a técnica de pisos de cimento começou a se disseminar. Apesar de não ser barato, pode ser reproduzido, ao contrário das pedras e, mais do que isso, pode receber estampas que duram décadas, até séculos; vai ver a durabilidade de um porcelanato com a carga de uso que os ladrilhos instalados no pré-guerra suportam até hoje, vai.



            Após a Grande Depressão, que se alastrou até a segunda guerra, o surto de criatividade e esperança de que falei fez proliferar os ladrilhos com temática geométrica, que ainda hoje são tão modernos quanto elegantes, e estão em grande quantidade nos prédios históricos de Brasília, usados principalmente como revestimento de paredes. A quem tiver a chance de visitar a capital do país, asseguro que será uma grata surpresa a cada metro visitado, do tipo que revela mais detalhes e riquezas quanto mais perto se chegar. É um desbunde ver aquela arquitetura pós-moderna usufruindo do aconchego e do charme familiar que os azulejos e ladrilhos decorados oferecem. Mesmo nos tons mais sóbrios há uma explosão de vida e esperança que encanta principalmente as crianças.


Fonte: Carocim


            Não faz muito tempo que os bares e cafés mais reservados e personalizados, começaram a usar mosaicos de ladrilhos (às vezes imitações ou meros papéis de parede, pois são caros) na decoração principal, especialmente atrás dos balcões de atendimento e ao lado das mesas internas. Aqui geralmente em tons terrosos, dando um ambiente mais bucólico e rústico, que ajuda a acalmar e manter o cliente mais tempo no estabelecimento, sem o uso de estimulantes de baixo-ventre e sem anular a noção de tempo.



            No decorrer desse revival, marcas que estavam restritas a nichos se encorajaram a ousar, e o que eram apenas lojas de demolição, se tornaram fornecedores de mercadoria original de época… e os centavos que pagavam por um pacote, não levavam mais nem uma lasca de uma peça. Aliás, peças lascadas ou rachadas, antes destinadas ao descarte, agora são usadas para dar um aspecto mais autêntico, como se estivessem naquele piso ou parede há décadas, cheias de histórias para contar.


Fonte: Carocim


            E aqui vem a principal causa do saudosismo, não me refiro só à robustez e aptidão às cargas mais pesadas de trabalho. O ladrilho hidráulico, como a cerâmica autêntica e as pastilhas, dá vida ao piso. Algo que aquele vazio quadriculado, fácil de arranhar e quebrar, não oferece. São donairosos motivos que podem tanto formar amplos e elegantes padrões repetitivos a perder de vista, quanto lúdicas colchas de retalhos de cimento, que arrancam sorrisos dos mais sisudos, ou melo menos um traço a menos de amargura nos cabisbaixos. Um piso vazio, cercado de paredes vazias, com uma decoração vazia, é uma armadilha letal para depressivos. Um pouco de cores e formas não faz mal nem ao mais tradicional dos cavalheiros ingleses.



            Não é de se admirar que esse mercado emergente e sólido chame a atenção de mais gente, a ponto de já haver quem faça projectos personalizados para quem se dispuser a pagar. Ladrilhos temáticos não são mais novidades, especialmente os alusivos à times de futebol, já há quem os ofereça como productos de linha da empresa. O que me faz lembrar, algumas calçadas em Goiânia ainda têm ladrilhos hidráulicos com estampas das empresas que ocupavam as áreas correspondentes… durabilidade pouca é bobagem. Durabilidade e versatilidade, já que toda essa resistência real os torna aptos a constituir desde artesanatos, até pisos de garagens de caminhões.


Fonte: Casa de Valentina


            Abdicando da facilidade estéril e depressiva, que só deveria estar presente em ambientes sanitários, e olhe lá, quem opta pelos clássicos atemporais da decoração de ladrilhos dá motivos para as pessoas permanecerem em casa, simplesmente porque as faz se sentirem melhor no ambiente. Há aconchego, compreendem? São coisas que uma vez instaladas as peças, os moradores obtêm de graça, pelo resto de suas vidas, angariando a simpatia dos mais jovens, que se queixam e argumentam justo a monotonia familiar para não permanecerem. As crianças, é claro, têm à disposição um brinquedo forte e durável à sua disposição. É um dos maiores bônus das coias antigas, elas geram empatia, formam e fortalecem as ligações que são muito úteis em épocas de crise, como a adolescência… Eu sei, meus amigos, é fogo, dá vontade de arrancar os cabelos, mas é uma fase, em dois ou três anos isso passa.



            O ônus do cimento, que às vezes se mancha com relativa facilidade e não é tão fácil de limpar, é compensado pela durabilidade e praticidade de substituição, bem como pela facilidade moderna de ser impermeabilizado. A espessura, por ser de produção artesanal, também não é tão uniforme, necessitando de ajustes no assentamento para manter o piso nivelado, mas aqui terminam as desvantagens. Quem já precisou trocar um piso moderno, sabe dos impropérios que a vizinhança indignada e ávida por silêncio, é capaz de proferir. Mesmo com os contras, vocês AINDA podem ver em muitas cidades, esses ladrilhos instalados em calçadas públicas, resistindo aos transeuntes e até mesmo a veículos pesados por décadas a fio. Mesmo sendo um material poroso, que em princípio absorve mais sujeira, ainda exibem cores vivas e encantadoras, se destacando do resto da paisagem, dominada por esterilidade espelhada e porcelanato (este sim) cafona impróprio para pisos externos.


Fonte: Archduo


            Aqui vocês já devem ter percebido o tipo de gente que aprecia esse material, é aquela que gosta de cultivar relações e não joga pessoas fora, por não terem satisfeito suas expectativas; em suma, é para quem quer amadurecer e arcar com a maturidade. Coisas antigas ajudam a aprender isso, de uma forma mais bonita e agradável do que a vida ensina. Gente que percebe que as dificuldades do cotidiano, para quem amadurece, só têm a acrescentar. Mas a recompensa vem. Apesar do peso e da rusticidade que os ladrilhos têm individualmente, em conjunto eles têm a leveza que a brutalidade dos anos não leva. Assim como nem a destruição em massa extinguiu aqueles carrões maravilhosos da era de ouro… e eles começam a despertar interesse novamente.

Fonte: Viva Decora


            Ficarei devendo a vocês um artigo sobre as charmosas e carismáticas pastilhas, que ainda figuram em fachadas e podem ser usadas até como bijuterias. Está na fila, mas asseguro que escreverei a respeito. Para mais, separei alguns links úteis a respeito.

Empresas: Carocim (França), Cemitério dos Azulejos, Museu dos Azulejos, Refinare, Casa de Valentina, In-Ex, Ladrilart, Ladrilar, Viva Decora, Patrimônio Belga e Pisos Antigos.

Artigos : Tua casa, Conexão Decor, Elegância das Coisas, Fundação Athos, Brasília Concreta, Gazeta do Povo e Homif.

Vídeos: Instalação, Como se fabrica.

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