domingo, 5 de janeiro de 2020

Aos anos 20

Buick 1920s

    Muito bem, estamos nos anos 20! Vamos nos vestir como melindrosas e sair dançando charleston e popstrot do pôr do sol até a alvorada. Certo? ERRADO! Assim como os anos 50 não se resumiam a vestidos rodados de bolinhas, os 20 não foram povoados por clones da Betty Boop!

The Brooklin Daily Eagle, New York, 06-02-25


    Comecemos esclarecendo uma coisa, estamos no zero dos anos, que assim sequer iniciaram a década ainda! Vão uns três anos até a personalidade da década começar a se definir, até lá ainda veremos os anos 10 em todos os lugares. No início dos anos 1920 a cara e nada prática bélle époque ainda podia ser vista na paisagem. Não era em todos os lugares que as toneladas de tecidos em saias, creolinas e bufantes eram usadas, mas ainda assim alguns exageros podiam ser vistos nas ruas, inclusive à luz do dia, até mesmo invadindo o início dos anos loucos.



    Passada a fase de transição, agora se iniciam os anos 20 clássicos. Aliás, a indumentária masculina pouco mudou até os anos 1960, mas a feminina é um camaleão e é a que indica com clareza qual a época da imagem registrada, é por isso que ganha muito mais importância quando nos lembramos ou estudamos um período remoto, e é por isso que tratamos tanto mais dela do que da outra.




    Bem, as roupas cotidianas, apesar de calças e ternos longos começarem a aparecer em famílias mais abastadas, eram evoluções das peças vitorianas, com mais foco em praticidade e na herança da primeira guerra, quando as mulheres precisaram ir às fábricas para substituir os homens; coitados, pensavam que seria uma guerra como as outras, com um mês ou dois e depois o retorno para comemorar o natal em casa... depois da mecanização, a guerra nunca mais foi a mesma, e as estratégias vencedoras de outrora fracassaram totalmente.



    Por algum tempo todas as saias ainda chegavam aos pés, mas o corte era mais simples, a peça mais simples e o uso muito mais prático, de quebra as donas de casa tinham menos trabalho para lavar as roupas; lamento, caras feministas, estou fazendo um relato de época, por décadas a mulher ainda era fadada a ser dona de casa, empregada doméstica, freira ou prostituta, com raríssimas exceções, então poder lavar menos peças de roupa era sim um alívio enorme. As blusas eram bastante confortáveis, com pouco ou nenhum adereço e facilitavam muito os movimentos, tanto os finos quanto os amplos, isso facilitou inclusive o uso das máquinas de costura, esta um sonho para a maioria das mulheres de então.


    Foi com o início do progresso econômico da década que as saias começaram a subir mesmo, porque professora e telephonista não eram mais as únicas profissões honestas que elas podiam exercer, muitas já dirigiam e a maioria andava muito, as barras muito baixas se sujavam e se danificavam com muito mais facilidade, assim com o tempo o tornozelo deixou de ser um fetiche sexual masculino, porque já estava à vista em todos os lugares.

Lilyan Tashman


    Foi nessa época também que a urbanização mundial se acelerou abruptamente, com isso o trânsito e o estresse se intensificaram, então as saias precisaram subir mais um pouco, porque as mulheres precisavam correr não só para chegarem a tempo ao trabalho, mas também para fugir dos carros, porque as leis de trânsito ainda eram rudimentares e, acreditem, o nível de ruído era muito mais alto do que vocês podem imaginar, então as reações precisavam ser rápidas. Ser secretária executiva já povoava as aspirações de muitas moças, que assim precisavam se adequar à eficiência e prontidão do ramo dos negócios, ou seja: a necessidade de arcar com a nova realidade obrigou as saias a subirem mais.




    É claro que muitas saias longas ainda eram vistas, mas não para quem precisava correr, subir vários lances de escadas e dirigir com freqüência. As mulheres mais abastadas e as que ficavam em casa ainda podiam se dar esse luxo, mas mesmo entre as mais abastadas os encantos de vestidos curtos e reveladores se mostravam fortes. Também, influenciadas pela crescente indústria do cinema, com sua imensa capacidade de exagerar as licenças poéticas do teatro, começaram a usar calças à moda de Cocó Chanel, o que enterrou de vez o estilo onírico e principesco, mas sem condições de uso para pessoas comuns de Madame Vionet. as pantalonas eram sucesso absoluto entre as adeptas das calças. No final das contas, apesar da predominância de vestidos longos e saias, a riqueza estilística era muito grande, e tudo o que foi feito então serve de base até hoje.


    E por falar em vestidos curtos e reveladores, essas menininhas mimadas de classe alta fizeram um grande favor, porque roupas assim eram exclusivas de flappers, que eram quase sempre prostitutas de alto padrão, mas graças a elas o termo passou a designar o estilo atrevido e sensual que eclodiu nos anos 1920. Assim as moças de vida nem um pouco fácil circularam paulatinamente com menos restrições e menos constrangimentos, visto que a maioria das roupas que usavam não eram mais marcadores de profissão. Com tudo isso, os penteados elaborados e os cabelos muito longos não eram mais tão desejados, e o mundo descobriu as que mulheres tinham nucas! Estas belamente complementadas por chapéus que caíam de modo confortável e anatômico, em oposição às peças enormes, pesadas e extremamente delicadas de há até dez anos, seguindo todo um novo modo de vida.



    Agora um adendo importante: NÃO! Usar roupas curtas e provocantes NÃO era como NÃO é busca por sexo! Embora a sexualidade tenha aflorado, casar-se virgem ainda era não só tabu, mas um desejo de quase todas as mulheres, inclusive as flappers. Para muita gente era um escândalo, mas ir aos finalmentes com um homem antes da noite de núpcias, era mais propaganda difamatória de que facto consumado, ou o fetiche das flappers não teria sido tão intenso e durado tanto tempo, aliás fazendo marmanjos babarem até hoje. Lembram de que falei das canelas terem sido um fetiche até o início da década? Pois sim, deixaram de ser quando se tornaram facto na paisagem. O que não é comum, continua a povoar o imaginário.

The Brooklin Daily Eagle, New York, 09-16-25


    Antes de darem ouvidos a quem não sai da salinha com ar condicionado e só lê o que lhe é ordenado, ou não sai das rodas de cafajestes de botequim, falem com ou ouçam os relatos de quem estava lá. Havia como ainda há preconceitos e tabus, mas não era o inferno que muitos fazem parecer, para a maioria das pessoas a vida era mais tranqüila do que hoje.


    Apesar de a maioria achar até bonito, entretanto, manter as coxas, os ombros e o colo longe dos olhares curiosos continuava a ser a regra, ao menos em público, porque mesmo as roupas de banho ainda tampavam quase tudo. Mesmo com tudo o que estava acontecendo, lembremos que ser dona de casa ainda era regra e, no Brasil, as mulheres precisavam de permissão por escrita dos maridos para trabalhar fora, até 1962; sempre fomos MUITO atrasados e a proclamação da república só piorou tudo. A maioria não via alternativa a esse destino, então se conformava, algumas a contragosto, embora mesmo entre as mais liberadas o sonho do casamento ainda estivesse vivo, como é até hoje.


    A solução dos estilistas para o desinteresse pelas grandes massas de tecido, foi transformar o corpo da cliente em uma obra de arte, influenciado pelo optimisno do art déco e sua popularidade de vento em popa. Assim os vestidos de festa e de gala tornavam esculturas vivas as mulheres que os vestiam, muitas vezes bagunçando as cabeças porque eram caríssimos, visto que demandavam extensa e bem remunerada mão de obra, mas para os padrões de então deixavam as mulheres praticamente nuas, com todas as suas formas visíveis e destacadas por linhas e recortes, principalmente quando andavam ou dançavam... e na hora da dança a diferença entre a peça cara e a barata aparecia, porque os vestidos bem acabados pareciam ser uma dançarina vestindo outra dançarina, fazendo as pernas darem seu espetáculo em flashes de coxas totalmente à vista, e foram esses flashes que ficaram na memória e no imaginário.


    E sim, as danças de então eram realmente loucas, a ponto de até hoje serem muito difíceis de aprender, exigirem um preparo físico muito bom e uma elasticidade que destoa desta era de sedentarismo, além de exigir que toda essa força e destreza sejam executadas de modo leve e despreocupado... Charleston é uma prova dura e um grande incinerador de gordura. Em ambientes privativos, como em muitas casas de família, a liberdade estourava. A obediência a pai e mãe era regra sacra, mas salvaguardado isso, a criatividade e a expressividade encontraram poucas épocas mais propícias do que os anos 1920. E vocês sabem que sabendo como e quando pedir, eles podem ceder muito, mesmo os mais rigorosos.


    Com o avançar da década e com a bolha especulatória inflando, porém, os trajes de banho encolhiam e desta vez os homens também ficavam amis expostos, em parte com a chancela dos corpos esculturais que Hollywood mostrava em cenas que escandalizavam os gritadores, faziam a Rússia discursar inflamadamente contra a "decadência moral ocidental" sem ninguém poder contestar em seu território, mas deliciavam os olhos da maioria; basta ver o boom de revistas, livros e de filmes em que as descrições anatômicas se tornavam cada vez mais evidenciadas e poetizadas, e o público crescente de TODAS as idades.
The Brooklin Daily Eagle, New York, 02-11-25

    Aliás, Metropolis foi um marco e influenciou muito as outras obras, aumentando a fascinação e o temor que as pessoas tinham pelos conglomerados urbanos. O encantamento pelas luzes noturnas ajudou na evolução da moda, e a tornar mais comuns os delírios estilísticos das passarelas. Ombros e colos desnudos até o limite, de modo a fazer parecer que a qualquer momento os seios seriam vistos, mas eram só aparências mesmo, na maioria das vezes só a silhueta adornada pelo brilho do tecido atiçava a imaginação.

Cena de Metropolis

    Entretanto, como os mais atentos puderam e podem ver no filme, toda essa cultura de progresso e mudanças estava embasada em arquétipos muito bem conhecidos, o que não é demérito. É o bom alicerce da tradição o filtro que separa o modismo da evolução cultural, e nisso os anos 1920 lograram êxito com louvor, tanto que nos anos 1970 eles estavam de volta à moda, inclusive nos carros, e os móveis de época voltaram a ser valorizados, muitas pessoas que viveram os anos loucos ainda estavam vivas para dizer como era e o que aconteceu, claro que o cinema pegou carona.

Josephine Baker

    Houve excessos, é claro, e a sociedade da época ainda era em grande parte muito puritana, o que gerou alguns excessos de puritanismos bem intencionados que deram tiros pela culatra, como a lei seca americana. Filmes de animação exibidos para criança ainda estavam livres de regulações e os autores os faziam de modo a serem engraçados a qualquer custo, mesmo com a sexualidade exposta e a violência escancarada... na verdade nada de muito diferente do que se viam nas ruas, mas com o potencializador das caricaturas fazendo tudo parecer muito mais intenso do que realmente era, e isso sim chamou a atenção dos censores. O resto vocês já podem imaginar, não demorou a tudo ser codificado e classificado rigidamente em faixas etárias.
Copacabana, meio dos anos 1920
Lila Lee, início dos anos 1920

    Então veio a explosão da bolha, as pessoas se deram conta de que estavam comprando promessas e não valores, as bolsas quebraram e todo esse esplendor deu lugar à década mais depressiva da história. Depressiva, mas como eu já disse aqui, foi uma das mais belas e bem resolvidas, apesar de todos os conflitos externos, internos e íntimos.