sábado, 25 de maio de 2019

Cápsulas do tempo - I

Chateau Banana, abandoned placce.


    O termo não é novidade. Muita gente ainda hoje pega recortes de jornais e revistas, objectos ainda lacrados, cartas, documentos e photos, lacra em um pequeno baú e enterra ou guarda onde ficará por muitos anos, não raro por décadas. Então os autores ou descendentes vão ao local e testemunham o que foi um pouco da época em que o recipiente foi recheado, quase sempre se admirando e até rindo do que lêem e vêem com circunflexo. Experimente ver um arquivo completo dos anos 1990, tua reação não seria muito diferente.

Boliche abandonado, 1960s


    Varia muito o conteúdo. Pode ser só uma coletânea de recortes ou cartas, mas pode ser uma pequena fortuna em obras e artigos de época, em ambos os casos o valor inflaciona com o tempo, a escassez e a demanda. Mas há um tipo de cápsula do tempo que nem sempre é deliberada, ás vezes é até traumática... Nem sempre, pois há quem preserve porque gosta e quer que tudo fique basicamente como estava quando tudo foi comprado, mas muitas cápsulas do tempo são casas abandonadas que, dependendo do clima e do grau de delinqüência da região, se degradam por falta de manutenção.

    No Brasil, como em todo país de burocracia insana, há o agravante do inventário que nem sempre é feito a tempo, o titular falece e absolutamente nada pode ser feito de relevante, e os herdeiros nem sempre se interessam em preservar e usufruir do que já há, sempre querem vender rapidamente e ninguém entra em acordo com ninguém, e tudo é posto a perder. Sim, a mentalidade brasileira no tocante ao pecúlio gera também esse prejuízo, e sou testemunha disso.

Nem todas as cápsulas são abandonadas. 1960s

    Entretanto, em regiões de clima menos severo e delinqüência baixa, se comparada à nossa, é comum casas e estabelecimentos serem fechados e permanecerem preservados por décadas a fio, com pouco ou nenhum dano.

    Nesses lugares é possível ver e até sentir perfeitamente como viviam as pessoas naquela época e, em particular, naquele lugar. Conhecendo um pouco (um pouquinho só) de história e psicologia, é possível até mesmo sentir os dramas e lutos da família que ocupava aquela casa, ou da equipe e clientes daquele estabelecimento, especialmente quando há photos; e geralmente há algumas em boas condições.

Alguns desses lugares guardam tesouros inacreditáveis. 1940s

    Nem sempre as razões do abandono ficam claras, há casos em que os moradores simplesmente se vão e nunca mais dão notícias, deixando para trás uma casa repleta de fantasmas do que um dia foi, ou deveria ter sido uma família feliz. Para a vizinhança é um transtorno, porque uma casa abandonada desvaloriza todas ao seu redor, mais do que um lote baldio.

    Em qualquer situação, mesmo em países de pouca burocracia, é difícil decidir o que fazer com uma casa assim. Com um estabelecimento comercial nem tanto, a carga tributária é mais pesada e isso força o município a tomar decisões mais prontamente, mas uma casa tem todo o peso da pessoalidade e das ambições de possíveis herdeiros.

Uma capsula habitada e bem conservada. 1960s

    Com o advento da internet moderna, ou seja, pós 1995, a facilidade em enviar e hospedar arquivos complexos facilitou a vida de quem procura por cápsulas do tempo. E é mais gente do que vocês imaginam. Há inclusive corretores que se especializaram nisso, nos Estados Unidos, simplesmente porque muita gente QUER viver em uma autêntica casa ou ter um autêntico comércio dos anos dourados.

    O grande problema são os aventureiros que simplesmente invadem e às vezes depredam esses lugares, e ainda exibem seus feitos em vídeos para o mundo todo. Mesmo os que só querem registrar o ambiente são motivos para preocupação, porque um lugar desses nem sempre recebe manutenção, e os problemas de quando foi fechado nem sempre estão sanados, os riscos de ferimentos graves e até óbitos são grandes. Não bastasse isso, os proprietários ou herdeiros podem ser responsabilizados pela irresponsabilidade alheia.

Boliche 1960s

    Há também um misto de má vontade e descrença de proprietários que não vendem e não conservam. Já vi seis DKW virarem pó assim, foi de cortar o coração. Em parte porque há pessoas que realmente não gostam de suas famílias e querem que se lasque tudo o que lhe disser respeito; em parte porque há muita gente rançosa que se apega a ponto de isolar, não cuidar, não deixar ninguém ver e não vender; em parte porque ninguém é obrigado a abrir suas portas a desconhecidos com argumentações estranhas, especialmente se a pessoa for judicialmente responsável pelo patrimônio em questão. Se faltar um pires de seja, as coisas ficam ruins para o cidadão, porque talvez não só não haja mais para repor, como um processo por responsabilidade pode se arrastar por anos e comprometer sua vida inteira.

Boliche 1960s

    Nem sempre é assim. Muitas vezes o fechamento do imóvel tem razões extremamente traumáticas para uma família, que pode fazer chorar ou ranger dentes à simples menção do caso. Uma casa ou um estabelecimento em que tenha ocorrido um crime violento ou uma tragédia de consequências irreversíveis, pode ser simplesmente lacrado porque foi a escolha menos ruim, a forma menos dolorosa de uma família lidar com aquilo.

    Mas há pessoas de boa vontade que, tendo tempo, se dispõe a ciceronear entusiastas por um pedaço da história, que é também o mundo de uma família que pode nem mesmo existir mais. Para muitos é uma alegria que alguém mais se interesse sinceramente por suas memórias, ainda mais com a promessa de divulgação pela internet; mas não se animem muito, não contem com isso. Apenas peçam e, na recusa, sejam suficientemente humanos para compreender que cada um tem suas razões, e elas podem ser muito espinhosas. Um trauma extremo pode contaminar as duas gerações seguintes ao evento.

Uma cápsula do tempo em perfeitas condições. 1940s

    Com o advento da internet moderna, ou seja, após 1995, ficou muito fácil e barato hospedar arquivos de grande porte. Se antigamente era um custo encontrar uma photo com mais de 100kb, hoje é fácil publicar e baixar vídeos de uma hora ou mais em alta resolução. Com isso os feitos estúpidos vieram à tona, mas os responsáveis e os corretores de cápsulas do tempo também se beneficiaram, para o deleite dos vintagistas de plantão.

O sonho dourado dos corretores de cápsulas do tempo. 1940s

    Toda a beleza e, por vezes, bucolismo dos anos 1940 até 1960 estão à disposição em imagens e vídeos de quem digitar "Abandoned home" e "Time capsule" no buscador. Para uma pessoa comum já seria algo muito interessante, para nós é um deleite sem preço.

    A maioria dessas cápsulas, principalmente as preservadas, está no hemisfério norte, em particular nos Estados Unidos e Canadá, que foi onde a cultura moderna nasceu e também seus admiradores modernos. Uma boa casa assim, em perfeitas condições, passa fácil de US$ 450,000. Se a casa tiver uma história relevante para a região ou a assinatura de um cultuado mestre do design, facilmente passa de um milhão.

Cápsula do tempo em Toronto. 1950s

    Não que qualquer casinha construída nos anos 1970 vai valer uma fortuna, não é tão simples. Em primeiro lugar, não é qualquer um que gosta disso, então a venda pode demorar, o que fatalmente baixa o preço. Em segundo lugar, é preciso saber anunciar e os corretores especializados não são muitos, no Brasil nem sei se existe algum. Em terceiro e mais importante, é preciso que tudo esteja em perfeitas condições de preservação, com mobília e utensílios de época aptos ao uso; isso é extremamente difícil em nosso país. Nossa memória é demasiadamente curta e seletiva! Quase ninguém preserva um liquidificador dos anos 1970! Muito menos um televisor preto e branco!

Apartamento em Chicago. 1950-60s

    Imaginem então encontrar uma casa dos anos dourados em boas condições, com mobília e utensílios de época! É desanimador pensar nisso. Muito desanimador, mas não a ponto de desistir, porque pelo menos nos grandes centros e nas cidades que têm tradições fortes, ainda é possível encontrar essas preciosidades, que podem ter até os carros da época na garagem. Mas enquanto o sonho da cápsula própria não chega, vamos nos deleitar com o trabalho de arqueologia de meio de século já feito. É muito mais material do que vocês podem imaginar, a ponto de poderem usar seus critérios para decidir sem culpas qual vale sua atenção; como decidir ver só cápsulas dos anos 1940, por exemplo. Vai se surpreender ao ver que algumas são habitadas.

    É um assunto rico que não se esgota com um só texto, então voltarei a abordar. Enquanto isso, aproveitem as facilidades úteis da internet e descubram o velho mundo que é mais moderno do que o novo. Vão lá!