terça-feira, 27 de abril de 2021

Memória pintada

 

Photo pintada - Félix Conrado Leiloeiro 1940-50s

Muito antes de haver aplicativos de celular, photoshop e até mesmo computadores, muito antes de qualquer truque de algoritmos para identificar a cor a que aquele tom de cinza corresponde, a tecnologia para colorir photographias era o pincel com o olhar aguçado e o bom conhecimento profissional do artista. Não é um trabalho simples, embora a desenvoltura dos profissionais faça parecer que é. Trata-se de dar vida nova a um arquivo já existente e que pode ser o único que a família do cliente tem, então não há margem para erros. Pelo poder que a arte lhes conferia, lhes cabia evidenciar mais umas características do que outras, fazendo, por exemplo um homem abrutalhado pela vida parecer mais austero do que qualquer outra coisa, isso por si já era um colírio para o modelo e seus entes. Aos mais atentos e sensíveis era nítido e surpreendente o grau artístico de trabalhos vindos de homens que, por formação ou surras da vida, às vezes ambos, demonstravam gestos rudes e palavras aparentemente ásperas.



Se hoje parece banal selecionar efeitos de iluminação e foco, pressionar um ícone e ter em um segundo a imagem colorizada com bom grau de confiabilidade, até o início dos anos 1980 os pintores de photographias ainda eram comuns em muitos rincões do Brasil, porque filme colorido ainda era caro para a maioria. As imagens eram quase sempre bem mais antigas, de pessoas que queriam ver seus entes tal qual eram quando vivos, ou mesmo quando mais jovens. Isso ajudava a manter a memória viva, mas também a enfrentar o luto. As molduras eram escolhidas com o mesmo capricho, às vezes meio barrocas, com o intuito de valorizar o registro. E por ser a tinta menos sensível ao ambiente do que o colóide, esses retratos costumam durar até mais do que as photos originais, estas então guardadas e às vezes esquecidas em gavetas. Embora o nordeste seja a região mais famosa por esse tipo de retrato, ele foi muito profícuo no interior de Goiás e ainda é possível encontrar famílias que preservam seus exemplares.

 

Photo pintada, parede interna de Casa da Erva Mate em bento Gonçalves, por 'Garfos e Quartos . com

A prática comum era, e ainda é, pintar pessoas humildes com roupas que jamais tiveram condições de vestir. Um lavrador que passou a vida usando camisas velhas e puídas ganhavam vistosos ternos ricamente sombreados, geralmente cinza ou azul-marinho para dar mais vida à imagem, acrescendo gravatas que eles jamais saberiam como amarrar porque muitas vezes nunca tinham visto uma; sim, é sério. A situação era bem mais precária do que vocês e seus professores imaginam, eu a testemunhei em lugares que apreciam ter escapado do fluxo do tempo, quando criança. Rádios de válvula eram ainda comuns nas casas que tinham electricidade, algumas nem isso tinham, mas é assunto para outro texto.

 

Artigo de Update or Die, nordeste brasileiro

As mulheres de origem humilde, às vezes iletradas, ganhavam vestes e um capricho de cabelo que muitas vezes não existiam nas localidades em que moravam, e quando existiam eram mais caros do que podiam pagar. Jóias simples ajudavam a emoldurar e valorizar seus rostos, não raro atenuando a dor irradiada pelo olhar. Não se tratava de emperiquetar até a senhora casada parecer uma mulher da vida, mas apenas tirar ao mundo o glamour que os anos de privações e sofrimentos lhe tinham tolhido. Às vezes elas não acreditavam que eram as suas imagens que estavam lá, mas os traços não deixavam dúvidas, o artista apenas atenuava ou extirpava as chagas da vida e deixava a beleza aflorar. Por irônico que pareça, apesar de geralmente menos letradas do que seus maridos, na maioria das vezes eram mais cultas e actualizadas.

 

Photo pintada - Levy leiloeiro

A quem podia, as crianças também ganhavam suas obras de arte, eternizando aquelas bochechas em roupinhas mais ricas do que as a que realmente tiveram acesso. Era bastante comum, ainda me lembro bem, ver photos compostas, com uma pose principal em tamanho maior circundada de miniaturas, tudo colorizado com esmero e especial carinho, com fundos em tons pastéis, dando vislumbres de uma infância amena que aqueles petizes dificilmente tiveram. Vez ou outra havia um brinquedo simples ornando a imagem, mas mesmo os brinquedos assim nem sempre estavam ao alcances dessas famílias; estão se dando conta de o quando essa geração mimizenta de hoje é muito mais rica do que as nossas foram e do que aquelas sonhavam ser? Noutros textos deixarei isso bem mais claro.

 


Longe do abastado eixo, ou bolha Rio-São Paulo, as novidades demoravam mais a chegar e essa tradição foi mais preservada, a ponto de mesmo com o advento das photos coloridas algumas pessoas ainda confiarem nos serviços dos photopintores. A obra era feita conforme encomenda e tinha um efeito mágico, fazia vir à tona uma beleza que a realidade abrasiva das pessoas humildes tolhia no cotidiano; as imagens na photo costumavam ser mais reais do que as próprias pessoas retratadas. Também havia os retratos póstumos, em que as chances desperdiçadas de poses conjuntas eram remediadas, mas justo pela diferença de épocas, a montagem costumava ficar evidente, tão evidente quanto o remorso. Era comum eu encontrar casas com paredes adornadas por uma ou mais photos colorizadas a tinta, com imagens dos donos da casa e seus descendentes. Pois é, houve época em que photos de família eram exibidas aos freqüentadores da casa, faz bem pouco tempo que isso começou a cair em desuso, nem trinta anos.

 

Photo pintada - acervo de Titus Riedl, Cratos, Ceará

Por muitas décadas esses artistas foram relegados à pecha de meros coloridores, especialmente com a explosão da arte abstrata e sua idolatria pelas academias, que dava aos detratores uma base “científica” para empurrar o trabalho esperado daquelas pessoas à vala das artes menores. Isso durou até a cultura vintage se firmar no Brasil e seus adeptos verem que nem tudo o que vinha de antigamente era ruim, na verdade a maior parte das coisas eram muito melhores do que gente que nunca viveu a época diz ser. Já nos anos 1980, com sua paixão arrebatada pelos 1950, os mais atentos começaram a notar isso. No caso das photos colorizadas a tinta, algumas coisas saltam aos olhos, além do fino trabalho artesanal. Muita coisa foi encontrada em espólios abandonados, cujos donos simplesmente parecem ter sido apagados do tempo, e hoje é vendida por bons preços em antiquários.

 

J. M. Goitia - Moça com Blusa Rosa 1941

O efeito de “mais real do que a realidade” se deve em boa parte ao efeito levemente brumoso da imagem trabalhada, que acentua os traços e cores com uma beleza dual e pode assustar algumas pessoas. Aquela imagem parece ser de gente congelada no tempo, com seus olhares para o infinito e suas expressões bastante serenas, com uma aura sobre fundo bem mais escuro detrás das figuras, dando a impressão de que aquelas pessoas ou estão ainda vivas, ou já mortas desde antes de a photo ter sido feita. Para muitos parecem retratos de cemitério. Quem já encarou uma dessas sabe que dão a impressão de estarem te observando e até mesmo vigiando os comportamentos estranhos dessa nova geração. Inspiram mais respeito do que muitas photos profissionais de autoridades.

 

Photo pintada - coleção de Jaqueline Bernardes

Por mais que um artista tente fazer similar aos outros, cada photographia dessas era única, inclusive pelos custos que demandava, assim os traços, as posturas, as expressões, as luzes e sombras também o eram e precisavam ser trabalhados de acordo. A isso se somem as técnicas, o estilo e o estado de espírito do artista, fazendo que mesmo duas cópias da mesma photo nunca saíssem idênticas; grau de personalização pelo qual hoje precisamos pagar os tubos, mas na época era normal. Por tudo isso, inclusive pela dificuldade de se conseguir um retrato, essas peças eram guardadas com muito cuidado e tratadas com carinho. Por vezes, muitos anos depois, o cônjuge sobrevivente tirava photos modernas abraçado a um daqueles retratos coloridos, como se fosse o guardião de sua própria história, com a dor da saudade estampando o olhar de súplica a pedir por quem se foi; quase uma prece registrada em prata.

 

Artigo de Update or Die

Com o ressurgimento do interesse, voltou a crescer o mercado de restauração desses retratos. Se é uma boa notícia, também inspira cuidado, porque sempre há um profissional duvidoso querendo apenas pegar o seu dinheiro e sumir no mundo assim que tiver feito o estrago, que nem sempre é percebido na hora. Dica? A mesma do dito popular: quando a esmola é muita, o santo desconfia. Mesmo artistas hábeis com tinta óleo podem não ter a expertise necessária, e a photo pintada se torna uma “reles” pintura sobreposta. Os motivos da segregação pelos modernistas em outras épocas são os mesmos de haver poucos profissionais aptos, quase todo o conhecimento foi transmitido oralmente, então não espere que uma restauração seja rápida ou barata… ou…

 

Faço baratinho, senhor...

Para um artigo profissional a respeito, clique aqui.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Aos anos 20

Buick 1920s

    Muito bem, estamos nos anos 20! Vamos nos vestir como melindrosas e sair dançando charleston e popstrot do pôr do sol até a alvorada. Certo? ERRADO! Assim como os anos 50 não se resumiam a vestidos rodados de bolinhas, os 20 não foram povoados por clones da Betty Boop!

The Brooklin Daily Eagle, New York, 06-02-25


    Comecemos esclarecendo uma coisa, estamos no zero dos anos, que assim sequer iniciaram a década ainda! Vão uns três anos até a personalidade da década começar a se definir, até lá ainda veremos os anos 10 em todos os lugares. No início dos anos 1920 a cara e nada prática bélle époque ainda podia ser vista na paisagem. Não era em todos os lugares que as toneladas de tecidos em saias, creolinas e bufantes eram usadas, mas ainda assim alguns exageros podiam ser vistos nas ruas, inclusive à luz do dia, até mesmo invadindo o início dos anos loucos.



    Passada a fase de transição, agora se iniciam os anos 20 clássicos. Aliás, a indumentária masculina pouco mudou até os anos 1960, mas a feminina é um camaleão e é a que indica com clareza qual a época da imagem registrada, é por isso que ganha muito mais importância quando nos lembramos ou estudamos um período remoto, e é por isso que tratamos tanto mais dela do que da outra.




    Bem, as roupas cotidianas, apesar de calças e ternos longos começarem a aparecer em famílias mais abastadas, eram evoluções das peças vitorianas, com mais foco em praticidade e na herança da primeira guerra, quando as mulheres precisaram ir às fábricas para substituir os homens; coitados, pensavam que seria uma guerra como as outras, com um mês ou dois e depois o retorno para comemorar o natal em casa... depois da mecanização, a guerra nunca mais foi a mesma, e as estratégias vencedoras de outrora fracassaram totalmente.



    Por algum tempo todas as saias ainda chegavam aos pés, mas o corte era mais simples, a peça mais simples e o uso muito mais prático, de quebra as donas de casa tinham menos trabalho para lavar as roupas; lamento, caras feministas, estou fazendo um relato de época, por décadas a mulher ainda era fadada a ser dona de casa, empregada doméstica, freira ou prostituta, com raríssimas exceções, então poder lavar menos peças de roupa era sim um alívio enorme. As blusas eram bastante confortáveis, com pouco ou nenhum adereço e facilitavam muito os movimentos, tanto os finos quanto os amplos, isso facilitou inclusive o uso das máquinas de costura, esta um sonho para a maioria das mulheres de então.


    Foi com o início do progresso econômico da década que as saias começaram a subir mesmo, porque professora e telephonista não eram mais as únicas profissões honestas que elas podiam exercer, muitas já dirigiam e a maioria andava muito, as barras muito baixas se sujavam e se danificavam com muito mais facilidade, assim com o tempo o tornozelo deixou de ser um fetiche sexual masculino, porque já estava à vista em todos os lugares.

Lilyan Tashman


    Foi nessa época também que a urbanização mundial se acelerou abruptamente, com isso o trânsito e o estresse se intensificaram, então as saias precisaram subir mais um pouco, porque as mulheres precisavam correr não só para chegarem a tempo ao trabalho, mas também para fugir dos carros, porque as leis de trânsito ainda eram rudimentares e, acreditem, o nível de ruído era muito mais alto do que vocês podem imaginar, então as reações precisavam ser rápidas. Ser secretária executiva já povoava as aspirações de muitas moças, que assim precisavam se adequar à eficiência e prontidão do ramo dos negócios, ou seja: a necessidade de arcar com a nova realidade obrigou as saias a subirem mais.




    É claro que muitas saias longas ainda eram vistas, mas não para quem precisava correr, subir vários lances de escadas e dirigir com freqüência. As mulheres mais abastadas e as que ficavam em casa ainda podiam se dar esse luxo, mas mesmo entre as mais abastadas os encantos de vestidos curtos e reveladores se mostravam fortes. Também, influenciadas pela crescente indústria do cinema, com sua imensa capacidade de exagerar as licenças poéticas do teatro, começaram a usar calças à moda de Cocó Chanel, o que enterrou de vez o estilo onírico e principesco, mas sem condições de uso para pessoas comuns de Madame Vionet. as pantalonas eram sucesso absoluto entre as adeptas das calças. No final das contas, apesar da predominância de vestidos longos e saias, a riqueza estilística era muito grande, e tudo o que foi feito então serve de base até hoje.


    E por falar em vestidos curtos e reveladores, essas menininhas mimadas de classe alta fizeram um grande favor, porque roupas assim eram exclusivas de flappers, que eram quase sempre prostitutas de alto padrão, mas graças a elas o termo passou a designar o estilo atrevido e sensual que eclodiu nos anos 1920. Assim as moças de vida nem um pouco fácil circularam paulatinamente com menos restrições e menos constrangimentos, visto que a maioria das roupas que usavam não eram mais marcadores de profissão. Com tudo isso, os penteados elaborados e os cabelos muito longos não eram mais tão desejados, e o mundo descobriu as que mulheres tinham nucas! Estas belamente complementadas por chapéus que caíam de modo confortável e anatômico, em oposição às peças enormes, pesadas e extremamente delicadas de há até dez anos, seguindo todo um novo modo de vida.



    Agora um adendo importante: NÃO! Usar roupas curtas e provocantes NÃO era como NÃO é busca por sexo! Embora a sexualidade tenha aflorado, casar-se virgem ainda era não só tabu, mas um desejo de quase todas as mulheres, inclusive as flappers. Para muita gente era um escândalo, mas ir aos finalmentes com um homem antes da noite de núpcias, era mais propaganda difamatória de que facto consumado, ou o fetiche das flappers não teria sido tão intenso e durado tanto tempo, aliás fazendo marmanjos babarem até hoje. Lembram de que falei das canelas terem sido um fetiche até o início da década? Pois sim, deixaram de ser quando se tornaram facto na paisagem. O que não é comum, continua a povoar o imaginário.

The Brooklin Daily Eagle, New York, 09-16-25


    Antes de darem ouvidos a quem não sai da salinha com ar condicionado e só lê o que lhe é ordenado, ou não sai das rodas de cafajestes de botequim, falem com ou ouçam os relatos de quem estava lá. Havia como ainda há preconceitos e tabus, mas não era o inferno que muitos fazem parecer, para a maioria das pessoas a vida era mais tranqüila do que hoje.


    Apesar de a maioria achar até bonito, entretanto, manter as coxas, os ombros e o colo longe dos olhares curiosos continuava a ser a regra, ao menos em público, porque mesmo as roupas de banho ainda tampavam quase tudo. Mesmo com tudo o que estava acontecendo, lembremos que ser dona de casa ainda era regra e, no Brasil, as mulheres precisavam de permissão por escrita dos maridos para trabalhar fora, até 1962; sempre fomos MUITO atrasados e a proclamação da república só piorou tudo. A maioria não via alternativa a esse destino, então se conformava, algumas a contragosto, embora mesmo entre as mais liberadas o sonho do casamento ainda estivesse vivo, como é até hoje.


    A solução dos estilistas para o desinteresse pelas grandes massas de tecido, foi transformar o corpo da cliente em uma obra de arte, influenciado pelo optimisno do art déco e sua popularidade de vento em popa. Assim os vestidos de festa e de gala tornavam esculturas vivas as mulheres que os vestiam, muitas vezes bagunçando as cabeças porque eram caríssimos, visto que demandavam extensa e bem remunerada mão de obra, mas para os padrões de então deixavam as mulheres praticamente nuas, com todas as suas formas visíveis e destacadas por linhas e recortes, principalmente quando andavam ou dançavam... e na hora da dança a diferença entre a peça cara e a barata aparecia, porque os vestidos bem acabados pareciam ser uma dançarina vestindo outra dançarina, fazendo as pernas darem seu espetáculo em flashes de coxas totalmente à vista, e foram esses flashes que ficaram na memória e no imaginário.


    E sim, as danças de então eram realmente loucas, a ponto de até hoje serem muito difíceis de aprender, exigirem um preparo físico muito bom e uma elasticidade que destoa desta era de sedentarismo, além de exigir que toda essa força e destreza sejam executadas de modo leve e despreocupado... Charleston é uma prova dura e um grande incinerador de gordura. Em ambientes privativos, como em muitas casas de família, a liberdade estourava. A obediência a pai e mãe era regra sacra, mas salvaguardado isso, a criatividade e a expressividade encontraram poucas épocas mais propícias do que os anos 1920. E vocês sabem que sabendo como e quando pedir, eles podem ceder muito, mesmo os mais rigorosos.


    Com o avançar da década e com a bolha especulatória inflando, porém, os trajes de banho encolhiam e desta vez os homens também ficavam amis expostos, em parte com a chancela dos corpos esculturais que Hollywood mostrava em cenas que escandalizavam os gritadores, faziam a Rússia discursar inflamadamente contra a "decadência moral ocidental" sem ninguém poder contestar em seu território, mas deliciavam os olhos da maioria; basta ver o boom de revistas, livros e de filmes em que as descrições anatômicas se tornavam cada vez mais evidenciadas e poetizadas, e o público crescente de TODAS as idades.
The Brooklin Daily Eagle, New York, 02-11-25

    Aliás, Metropolis foi um marco e influenciou muito as outras obras, aumentando a fascinação e o temor que as pessoas tinham pelos conglomerados urbanos. O encantamento pelas luzes noturnas ajudou na evolução da moda, e a tornar mais comuns os delírios estilísticos das passarelas. Ombros e colos desnudos até o limite, de modo a fazer parecer que a qualquer momento os seios seriam vistos, mas eram só aparências mesmo, na maioria das vezes só a silhueta adornada pelo brilho do tecido atiçava a imaginação.

Cena de Metropolis

    Entretanto, como os mais atentos puderam e podem ver no filme, toda essa cultura de progresso e mudanças estava embasada em arquétipos muito bem conhecidos, o que não é demérito. É o bom alicerce da tradição o filtro que separa o modismo da evolução cultural, e nisso os anos 1920 lograram êxito com louvor, tanto que nos anos 1970 eles estavam de volta à moda, inclusive nos carros, e os móveis de época voltaram a ser valorizados, muitas pessoas que viveram os anos loucos ainda estavam vivas para dizer como era e o que aconteceu, claro que o cinema pegou carona.

Josephine Baker

    Houve excessos, é claro, e a sociedade da época ainda era em grande parte muito puritana, o que gerou alguns excessos de puritanismos bem intencionados que deram tiros pela culatra, como a lei seca americana. Filmes de animação exibidos para criança ainda estavam livres de regulações e os autores os faziam de modo a serem engraçados a qualquer custo, mesmo com a sexualidade exposta e a violência escancarada... na verdade nada de muito diferente do que se viam nas ruas, mas com o potencializador das caricaturas fazendo tudo parecer muito mais intenso do que realmente era, e isso sim chamou a atenção dos censores. O resto vocês já podem imaginar, não demorou a tudo ser codificado e classificado rigidamente em faixas etárias.
Copacabana, meio dos anos 1920
Lila Lee, início dos anos 1920

    Então veio a explosão da bolha, as pessoas se deram conta de que estavam comprando promessas e não valores, as bolsas quebraram e todo esse esplendor deu lugar à década mais depressiva da história. Depressiva, mas como eu já disse aqui, foi uma das mais belas e bem resolvidas, apesar de todos os conflitos externos, internos e íntimos.

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Casa das Rosas - contribuição do leitor


 
Acervo Governo de São Paulo


           A leitora Tilma Castrillón de Macêdo nos mandou de São Paulo, imagens do centro cultural casa das Rosas. Para quem ainda não conhece, é uma mansão da época dos barões do café, localizada na Avenida Paulista, concluída pelo arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo em 1935. Seus herdeiros viveram lá até 1980, quando a glamorosa Paulista era um retrato da crise generalizada e do pessimismo camuflado que tomavam o mundo. Foi salva da demolição em 1991, transformada em centro cultural, e hoje divide seu lote original com um edifício comercial, na parte que dá para a Alameda Santos.


Publish News


            Além do magnífico acervo que é o próprio prédio, hoje uma jóia cercada por deprimentes e patológicos caixotes de vidro, oferece também cursos públicos e palestras livres. A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista, Bela Vista, nº 37 e tem entrada gratuita; quer dizer, manutenção e ingresso pagos previamente pelos impostos, então ela é sua também.

Anos 1980. Acervo Vovó Neuza

            Sem mais delongas, as photos bucólicas e enternecedoras que a Tilma nos enviou.

Photo de época
Apresentando o pé da Tilma :-)

            Ela foi tomar café com a amiga e colega Najla Citrângulo, após uma palestra de Vigilância sanitária, em sua viagem a trabalho.


            Notem que até o sanitário oferece um requinte sóbrio e reconfortante, com decoração compatível com a época da construção.



Sobre o centro cultural Casa das rosas, clicar aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.


Vídeo de Eric M. Guimarães:

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O mundo dourado em sua mesa - Diorama

 
Obra de George O'Keeffe

           É bem difícil encontrar uma pessoa que não se encante com uma bela maquete, uma miniatura bem-feita, ou um diorama com grande riqueza de detalhes. Eu conheço gente assim, por isso posso dizer que é uma minoria indigna de qualquer estatística séria. No máximo traço de gráfico. Principalmente para quem não tem disponibilidade de espaço, seja em casa, seja em um espaço alugado ou cedido, uma coleção de miniaturas de boa qualidade enriquece muito qualquer ambiente, ainda mais quando se trata de um vintagista, que geralmente tem bom gosto acima da média. Há quem compre maquetes de lançamentos imobiliários, quando a obra fica pronta e as unidades já foram vendidas… uma maquete de trinta andares cabe na sala e, ao contrário do edifício, pode ser admirada em todos os ângulos e decorada ao gosto do dono, para efemérides, sem precisar da autorização do condomínio.

            Mesmo aqueles que podem ter os objectos originais, às vezes principalmente essas pessoas, têm um brilho quase pueril no olhar, ante a possibilidade de ter uma versão menor, que possa ser apreciada de modo que as dimensões do original não permitem. No caso de um carro, admirar a parte de baixo sem precisar de um elevador de oficina, e sem o risco de um acidente fatal, é uma terapia para conhecedores. Isso além do facto de que alguns carros são tão raros e disputados, que é mais fácil conseguir as fortunas que eles custam, do que alguém disposto a vender o seu. Já soube de um divórcio, nos anos 1980, por conta de um Duesemberg… a miniatura mais avantajada, cara e ricamente detalhada, não teria causado isso.

Elgin Park e uma de suas obras

            Vamos ao básico. As diferenças fronteiriças entre miniatura, maquete e diorama não são rígidas e digitais, na verdade são muito analógicas e às vezes a linha que os divide é larga e difusa, como as próprias fases das décadas passadas.

            Miniatura é justamente o que o nome diz, uma versão menor do que o objecto representado. É como um genérico de maquete e diorama. Se fosse do mesmo tamanho, seria réplica, que é outra coisa e outro assunto para um texto futuro. A miniatura pode ser um simples brinquedo mais sofisticado, com boa dose de detalhismo para alegrar uma criança, mas também pode ser uma réplica em escala; um modo chique para denominar versões menores que são tão ricas em detalhes e em que as partes funcionam de modo tão fiel ao original, que uma boa sessão photográphica enganaria até mesmo experts, fazendo-os pensar que se trata de um original.

            Maquete é uma representação em tamanho menor de uma obra de grandes dimensões, mais utilizada na indústria da construção para que os potenciais clientes tenham uma idéia precisa do que pretendem comprar… ok, sabemos que muitas vezes existe uma distância astronômica entre o que é apresentado, e o que é realmente entregue, mas isso é um problema para o Procon, a polícia e o senso de direito e união de consumidores, que o brasileiro não tem. Enfim, a maquete é a miniatura levada ao profissionalismo, mas por isso mesmo se tornando algo mais, pela necessidade de dados e história e/ou prognósticos de que uma mera miniatura prescinde. E um prognóstico nada mais é do que uma especulação, por mais embasamento que tenha, da história futura. E história é justo o que conta uma réplica em escala de um P-47 Thunderbolt, por exemplo.


            Diorama… não, não me refiro a um evento da Dior e nem à pequena cidade do interior de Goiás. Diorama é quando a maquete é contextualizada no espaço-tempo. Por exemplo, uma réplica em escala de uma parede em ruínas com um piso de época e um soldado morto, se tiver bom grau de realismo, é um diorama de guerra, ainda que seja guerra urbana. E é aqui que o diorama se põe no topo da hierarquia dos três, existe a necessidade de realismo, o que quase sempre o torna mais caro e difícil de produzir do que uma simples (?) maquete. Um bom diorama pode levar anos para ficar pronto, mesmo ocupando o espaço de uma pesa pequena.

            A rigor, o primeiro diorama de verdade é o bonsai, ou pelo menos o seu precursor. Surgido na China do século VIII, caiu rapidamente no gosto dos japoneses, com suas sérias restrições de espaço, em especial dos monges, estes então podiam ter uma boa lembrança de um lugar sem precisar se apegar a ele, e sem possuir mais do que é capaz de carregar. Por volta do século XVIII o bonsai atingiu o estado de arte de que desfruta hoje, com técnicas tão refinadas que mesmo as menores versões podem ser capazes de gerar flores e frutos, reagindo às estações do ano como qualquer árvore normal. Isso, em um cenário em escala, é o suprassumo do realismo.

            É aqui que as cosias complicam para as pessoas comuns. Bonsais não são baratos e nem muito simples de se manter. Eles precisam de cuidados a mais do que uma simples planta pequena, o que inclui uma poda periódica das raízes, ou a planta vai crescer mais do que o desejado e, tristeza, deixar de ser um bonsai; o crescimento é irreversível. Assim como há pouca gente fazendo bonsais no Brasil, também há poucas aptas a prestar os devidos cuidados, o que dificulta e encarece sua manutenção.

            Embora as partes não vivas de um diorama não cheguem a esse nível de drama, a qualidade do cenário tem preço proporcional, não só em dinheiro, mas também em procedimentos e tempo empregados, tanto na produção quanto na instalação, se for o caso, e na manutenção. Para a alegria dos adeptos desse hobby, que é algo um pouco além de um mero passatempo, por seu caráter de perenidade, a indústria dos cenários em escala produz muita coisa nas escalas oficiais, o que poupa tempo e dinheiro… mas não muito. Figuras de pessoas e animais, plantas, trilhos ferroviários, mobília, cercas, fachadas, veículos, acessórios e uma infinidade de coisinhas que talvez ninguém saiba quantas realmente sejam.

            Essa é a boa notícia.

   
            A má notícia é que é QUASE TUDO importado… e muitas vezes a importação é independente, ou seja, por conta e risco do consumidor final. A feitura do diorama é quase como o restauro de um carro antigo, dificilmente o prazo e o orçamento serão aqueles previstos, sempre aparece um problema. Murphy não descansa. É aqui que entram a arte e o talento da improvisação, tão desenvolvidos no brasileiro… e não, a casa da Barbie não é um diorama. A própria boneca não é realista o suficiente para isso, o que não significa que seus caros acessórios não permitam fazer um belo cenário de época, podem e os fãs mais bem remunerados montam alguns de rara beleza, mas tudo ainda fica com cara de brinquedo. Se é para te fazer feliz, vale sim.

            Para o nosso caso, que seria um diorama de época, bastam um pouco que pesquisa séria com imagens, alguns vídeos temáticos e, se for o caso, consulta a pessoas que se dedicam a estudar o assunto; o YouTube está bem servido delas, não é muito difícil. O mais simples é fazer um cômodo aberto com duas ou três paredes e os móveis. Um quarto, por exemplo, pode ser feito sobrepondo e colando duas caixas de sapatos, que podem ser decoradas com imagens baixadas da internet, devidamente redimensionadas, incluindo papel de parede e piso. Um pouco de habilidades manuais é necessário, porque será preciso recortar, modela e até pintar, por menores que sejam as intervenções. Palitos de espetinho podem tanto reforçar as paredes, quanto formar a estrutura da mobília, com palitos de dentes formando as partes mais delicadas. Retalhos de tecidos, vendidos por uma ninharia, serviriam para a roupa de cama, tapetes e as cortinas, com arremates feitos com cola. Tudo isso pode ser feito em um dia ou dois de trabalho dedicado, com, pelo menos, mais um para tudo ficar curado e consistente para ser levado consigo.

   
             Claro que isso é uma orientação genérica e já considerando que vocês já têm alguma habilidade manual; aqui não dá para se partir do zero absoluto. A receitinha básica e genérica que dei pode ter resultados surpreendentes, para quem tiver paciência e perseverança, se precedidas de uma boa pesquisa de época, algo fácil com a internet; principalmente para quem já tem em mente o que quer. Vocês são no mínimo entusiastas do modo de vida de outras épocas, então vocês têm sim ao menos noção do que querem, alguns até sabem com precisão o que desejam, isso facilita muito mais do que vocês imaginam; poupa muito dinheiro, muito tempo, muitos aborrecimentos e até acidentes de trabalho.

            O passo seguinte é usar chapas de mdf para fazer tudo, mas então a tesoura de costura e a faquinha de mesa não servem mais, é necessário ter ferramental apropriado, embora nada de sofisticado. Algumas lojas fazem corte e modelação a pedido do cliente, não todas, e nem todas o fazem sem custo adicional, mas é uma opção para quem não quer ou não tem condições de fazer a parte pesada do serviço. Felizmente uma chapa mais fina serve bem para nossos propósitos, por menos de R$15,00 dá para comprar uma boa placa crua de 50X50cm, o que é bem grande para um diorama de mesa. Infelizmente as ferramentas adequadas não são tão baratas, porque é um material relativamente resistente e duro, por isso é uma boa idéia terceirizar o corte, porque um erro pode por tudo a perder.

            A grande vantagem dessas chapas é a versatilidade, e poder se conseguir um bom grau de detalhismo, desde que o ferramental e a mão de obra sejam os adequados. Dá para reproduzir até as charmosas cadeiras de madeira curvada, muito em voga até os anos 1940. Com o tempo e a prática, seus movimentos para corte e moldagem estarão quase automatizados, será quase como cortar papelão.

Explosão feita com algodão e muita técnica

            A partir daqui a coisa fica realmente mais cara, demorada e sofisticada, sendo recomendável um curso de artesanato ou profissional, porque qualquer erro pode significar jogar tudo fora e fazer de novo. É o mundo dos profissionais, que chegam ao requinte de produzir seus próprios materiais de trabalho, transformando chumbo em ouro; como pegar uma miniatura barata, trabalhar cada detalhe e extrair dali uma réplica em escala de primeira qualidade. Mas isso é para quem perseverar e, quiçá, decidir fazer disso um negócio, então um estúdio com um laboratório anexo, nos moldes de um bom atelier, pode fazer parte de seus planos. Não que eu queira que vocês trilhem esse caminho, é apenas uma amostra do imenso horizonte inexplorado que os brasileiros têm à frente, mas ao qual não avançam.

            Até mesmo vocês vão sofrer alguns aperfeiçoamentos, seus subconscientes trabalharão e se fixarão em pedaços sólidos tridimensionais de expressão, o que não só fará vocês se reconhecerem bem naquele diorama, como também fará as pessoas próximas e talvez um psicoterapeuta, perceberem uma melhoria de comportamento que poderá ser útil, não só a saúde mental, como também na vida profissional e social. Não só isso, a vida escolar é muito potencializada. Aqueles trabalhos sobre base de isopor que as crianças fazem, podem ser considerados rudimentos de um diorama e, se os adultos soubessem estimular em vez de simplesmente pressionar, o envolvimento de todos os sentidos tornaria o aprendizado não só mais rápido, mas também indelével. Pois é, muitos de vocês são miniaturistas e ainda não se deram conta, talvez porque foram mal apresentados à arte.

Obra de Elgin park

            Como tudo o que fica acima da linha de cintura, a arte da miniaturização é ignorada ou mesmo malvista no Brasil. Lá fora, desculpem o clichê, existem empresas especializadas em suprir o mercado de amantes e profissionais da área, inclusive com a possibilidade de se comprar casas de época, em várias escalas, completas! Com precisão de medidas e riqueza de detalhes de fazer inveja a muitas casas de verdade. Imaginem poder encontrar aqui, casas, carros, trens, trilhos, árvores, animais e figuras de pessoas, tudo pronto para montar sua cidade de época; ou no máximo personalizar peças para que fiquem ao seu gosto. Imaginaram? Vão sonhando, porque pelo menos isso ainda é grátis. Aqui há poucas lojas, em poucas cidades, com comparativamente poucas escolhas a preços relativamente elevados, mesmo para os padrões dos miniaturistas profissionais. Decerto que a nossa baixíssima demanda conspira contra.

Obra de Elgin Park

            Um expoente dos dioramas de época é Elgin Park. Ele costuma fazer ensaios primorosos, que mesmo os olhos mais bem treinados têm dificuldades em identificar como cenários em escala. Ele é um homem insuspeito, em seu aspecto até bucólico, mas domina técnicas altamente sofisticadas, unindo seu vasto cabedal a um talento artístico raro. Um pequeno carrinho a controle remoto, com uma câmera no lado do motorista, faria qualquer um se ver entrando em uma rua dos anos 1950, mesmo aplicando o zoom. A questão aqui é que um miniaturista do naipe de Park, sabe adequar a textura do objecto real às dimensões reduzidas do diorama. É esse o segredo e é essa a dificuldade maior, os materiais usados na vida real não terão sua granulação reduzida só por serem cortados em tamanhos menores, ou utilizados em porções menores. A água, por exemplo, tem viscosidade fixa, de acordo com a pressão atmosférica e a temperatura ambiente, assim um curso d’água em escala nunca terá o comportamento de um natural, o mesmo valendo para o vento. Uma miniaturização de alta ou extrema qualidade, não pode simplesmente utilizar a mesma matéria utilizada no tamanho real, não sem adaptações e até manipulação da fórmula. Daí a necessidade de estudar e praticar, como em tudo na vida, para fazer aquele diorama que bem poderia ser cenário de um filme.


            Algo que um vintagista pode fazer por si mesmo, é estudar o bairro onde seus avós viveram e, quem sabe, conseguir reproduzir a casa de onde seus pais saíram. Advirto que se trata de uma tarefa extenuante, sem prazos plausíveis, e dependendo do caso pode ficar bem caro. Mas a satisfação de uma casa antiga, em que suas lembranças caminhem junto com seus sonhos, com um ou dois bonsais ladeando e um carrinho antigo na garagem, poderá fazer milagres desde o início do planejamento, até o dia em que ficar exposta no local definitivo.

            Existem pelo mundo muitas cidades em miniatura, com precisão de medidas e riqueza de detalhes, que certamente vão inspirar vocês. Algumas têm visitação pública. Os temas são os mais variados, mas sempre inspiradores.


            A minha intenção aqui não é transformar o Brasil em um polo mundial do miniaturismo, ainda mais o de época, apesar de que eu ficaria muito satisfeito com isso. Meu intento é dar aos leitores uma opção sadia e orientações mínimas para ocuparem seu tempo, e de quebra aumentar seu cabedal cultural, porque muitos dos que começam com quartinhos de caixas de sapatos, simplesmente não param mais de se aperfeiçoar. E, no caso de vocês, mais um canal para expressarem e se enxergarem nas suas épocas preferidas. Com o aprimoramento da técnica, o aprimoramento pessoal é virtualmente uma conseqüência.

Ali Alamedy trabalhando

        Então, vintagistas, animados? Que tal um pedaço do mundo do cinema clássico em exposição permanente na sua sala de estar? Com o tempo, quem sabe, uma cidade inteira...

Sobre a obra de Elgin Park, pela lente de Michael Paul Smith, aqui e aqui.

O miniaturista profissional Ali Alamedy.

O miniaturista profissional George O’Keeffe.

O brasileiro Leo de Castro.

Algo sobre outros miniaturistas brasileiros, ainda desbravadores, clicar aqui.

Tutoriais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.